Os contratos de obras públicas sofreram, no ano passado, o maior desvio financeiro desde 2006. A despesa adicional superou os 130 milhões de euros, um aumento de 5,3% face ao valor inicial, de 2,4 mil milhões de euros. Este acréscimo diz respeito a 1.573 novos trabalhos – que se somam aos 491 contratualizados -, sendo também o número mais elevado de atos adicionais de há 17 anos. Empreitadas em estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal (IP) foram responsáveis pela fatura mais pesada, conclui uma auditoria do Tribunal de Contas (TdC) aos contratos adicionais celebrados no triénio 2020-2022.
A entidade fiscalizadora, liderada por José Tavares, ressalva que “foram analisados os desvios financeiros resultantes, apenas, de trabalhos adicionais ou supressão de trabalhos contratuais”. De fora desta auditoria ficaram os desvios financeiros relativos “a pagamentos de indemnizações por redução de trabalhos contratuais e, em especial, por pagamentos decorrentes de decisões de tribunais arbitrais”, esclarece o TdC. Do mesmo modo, não foram tidos em conta os acréscimos de custos a título de revisão de preços ou por “derrapagens de prazo de execução das obras”. Isto significa que, no seu todo, “os desvios financeiros podem ser muito superiores aos contratos adicionais” que foram estudados pelo Tribunal.
Assim, o crescimento da despesa escrutinada pelo fiscalizador é explicado, essencialmente, pelo aumento do número de trabalhos complementares, que foi alvo de reparos, e também pela atualização dos preços tendo em conta a subida da inflação, de acordo com o mesmo relatório que analisou 2658 contratos iniciais de empreitadas remetidos por 382 entidades públicas, entre Administração Central, autarquias, empresas do Estado, associações e fundações.
Em relação ao aumento de empreitadas adicionais, o Tribunal de Contas chama a atenção que “continua a não ser legalmente admissível a adjudicação como tal, de trabalhos relativos a melhorias, opções do ‘já agora’, trabalhos novos, uma vez que não são necessários para a sua execução”. O alerta da entidade fiscalizadora das contas públicas é relevante, tendo em conta que, no triénio 2020-2021, os trabalhos complementares, de 168,9 milhões de euros, representaram quase dois terços (61,55%) do acréscimo de custos apurado, na ordem dos 274,4 milhões de euros.
O impacto da inflação também foi significativo no aumento da despesa. O Tribunal de Contas constata que “os adicionais analisados representaram, globalmente, um acréscimo de encargos, a preços novos”. O relatório verifica que mais de metade do valor dos trabalhos adicionais (53,87%), na ordem dos 147,8 milhões de euros face à despesa adicional total de 274,4 milhões, foi atualizado a preços novos em vez de ser acordado a preços contratuais. “Observa-se, assim, uma tendência crescente para recurso a preços novos em detrimento dos preços contratuais”, salienta o TdC.
Analisando a variação anual dos trabalhos adicionais e suprimidos, observa-se que, excluindo 2022, o maior número de contratos complementares assim como o maior volume financeiro ocorreu em 2007. A partir desse ano, assistiu-se a uma descida constante do número de alterações até 2017, invertendo-se a situação em 2018 e 2019.
O número de atos adicionais em 2020 voltou a cair, bem como o volume financeiro muito por força da pandemia de Covid 19 e dos vários períodos de emergência que foram decretados, justifica o TdC. Nos anos seguintes, “retomou-se a tendência crescente quer quanto ao número de atos adicionais quer quanto ao montante financeiro do acréscimo”, de acordo com o mesmo relatório, sendo que, em 2022, o crescimento da despesa do número de obras complementares atingiram os valores mais altos da série estatística do TdC.
O valor da supressão de trabalhos contratuais – que a lei não permite compensar com trabalhos positivos – voltou a aumentar significativamente em 2020 e 2021, embora sem atingir o montante que se verificou no ano de 2012 (-52,59 milhões de euros), destaca o TdC.
Tendo em conta o triénio 2020-2022, as obras públicas sofreram um desvio financeiro líquido de mais de 212 milhões de euros – já descontando o valor dos trabalhos suprimidos, de 62,4 milhões de euros -, o que corresponde a um aumento de 5,72% da despesa inicialmente contratada, de 3,7 mil milhões de euros. Das 1.192 empreitadas acordadas, houve necessidade de acrescentar mais 2.902, mostram os dados da auditoria.
Os municípios continuam a ser as entidades públicas que mais alteraram os contratos, adicionando novos trabalhos, mas o montante mais elevado ocorreu no setor empresarial do Estado.
Estradas com mais despesa extraordinária
A liderar o ranking das entidades com maior volume de trabalhos adicionais surge a Infraestruturas de Portugal com um acréscimo líquido de 67,7 milhões de euros ao valor inicialmente acordado de 1,3 mil milhões de euros e que diz respeito a 347 trabalhos que foram adicionados às 103 empreitadas contratualizadas, mostram os dados da auditoria do TdC. Ao encargo extraordinário já foi descontado cerca de 17,8 milhões de euros relativos a obras que acabaram por não se concretizar.
Em segundo lugar, está a Lisboa Ocidental, SRU – Sociedade de Reabilitação Urbana com uma despesa extra líquida de 9,9 milhões de euros por mais 529 trabalhos relativos a 37 obras inicialmente contratualizadas pelo montante de 129,9 milhões de euros. A empresa municipal Gestão e Obras do Porto completa o pódio com um encargo adicional de 10,3 milhões de euros por mais 86 empreitadas face às 17 inicialmente contratadas pelo montante global de 71,6 milhões de euros.
A nível municipal, o primeiro lugar vai para a Câmara de Lisboa que, entre 2020 e 2022, teve de suportar uma despesa adicional em obras públicas de 6,3 milhões de euros por mais 57 empreitadas face às 29 contratualizadas pelo valor de 209,4 milhões de euros. Aveiro é a segunda autarquia com mais encargos extraordinários: 5,3 milhões de euros por 90 trabalhos que se juntaram aos 33 já contratados pelo montante de 46,9 milhões de euros. A fechar a lista dos três municípios com maior acréscimo de custos está Vila Nova de Famalicão com uma despesa adicional de 4,8 milhões de euros por mais 19 trabalhos face aos 13 iniciais que foram contratados por 29,4 milhões de euros.
Reabilitação de edifícios foi o tipo de empreitada com maior número de contratos iniciais que sofreram modificações no decurso da sua realização. Mas as obras em vias de comunicação, nomeadamente, em estradas, foram as que evidenciaram a maior derrapagem orçamental, indica a auditoria.
Entre 2020 e 2022, os contratos para obras nas vias de comunicação sofreram um desvio de 82,9 milhões de euros, subtraindo já 20,7 milhões com trabalhos suprimidos. O encargo extra, de 5%, somou ao valor do contrato inicial, de 1,7 mil milhões de euros. Dentro desta categoria, o destaque vai para o custo com trabalhos adicionais em estradas: mais 44,7 milhões de euros que agravaram o valor inicial do contrato, de 344 milhões de euros, em 13%, segundo a auditoria.
Por isso, o TdC destaca que “os contratos de empreitada relativos à tipologia ‘vias de comunicação’ que tiveram maior volume financeiro de alterações, continuam a ser outorgados na sua maioria pela Infraestruturas de Portugal e reportam-se, com maior expressão de alterações, à subcategoria estradas”.
Ainda assim, e observando o aumento percentual da despesa com empreitadas, o maior acréscimo de custos, em 7,8%, vai para a reabilitação de edifícios. O montante contratualizado para esta rubrica estava nos 762,1 milhões de euros e passou para 821,4 milhões: são mais 59,3 milhões de euros.
Este tipo de obras, de acordo com o TdC, “compreende as subcategorias de educação
(20,3 milhões de euros), serviços (18,5 milhões de euros), cultura, (12,7 milhões de euros), social (4,5 milhões de euros), atividades desportivas e lúdicas (1,6 milhões de euros), saúde (1,3 milhões de euros), lazer (231,5 mil euros) e justiça (201,7 mil euros)”.
Abusos na contratação de trabalhos suplementares
Apesar de o teto de 50% para o aumento do valor da obra com trabalhos complementares estar a ser respeitado, o TdC formula várias recomendações para evitar o abuso ao recurso deste tipo de instrumento.
Assim, e de acordo com o Código dos Contratos Públicos (CCP), as entidades da Administração Pública só devem contratar trabalhos complementares quando a mudança de empreiteiro “não seja viável por razões económicas ou técnicas, designadamente em função da necessidade de assegurar a permutabilidade ou interoperabilidade com equipamentos, serviços ou instalações existentes” e “seja altamente inconveniente ou provoque um aumento considerável de custos para o dono da obra”.
Para além disso, o TdC considera que “é obrigação do dono da obra”, isto é, da entidade da Administração Pública em causa, “colocar a concurso projetos rigorosos e detalhados das obras a realizar”, de modo a evitar trabalhos adicionais futuros. “Tal implica que o projeto deva contemplar e prever todas as situações tidas por necessárias e adequadas, tanto do ponto de vista técnico como do funcional ou do estético, não deixando para a execução da obra a procura das soluções mais adequadas à prossecução do interesse público”, avisa a entidade fiscalizadora das contas do Estado.
A entidade, presidida por José Tavares, recomenda ainda que a entidade contratante e o empreiteiro “formalizem, em contrato ou qualquer documento adicional aos contratos, as alterações por trabalhos complementares ou suprimidos, discriminando-os sem operações de compensação, e, se for o caso, autonomizem os trabalhos complementares adjudicados ao abrigo de regimes legais distintos”.
O relatório da auditoria alerta também para a falha no apuramento de responsabilidades dos empreiteiros por erros e omissões, durante a execução da obra. No conjunto dos contratos (1.192) objeto de alterações, foram detetados custos por erros do construtor em 132 obras no valor de 28,5 milhões de euros. Mas, desta importância, apenas foram imputados às empresas de construção 1,6 milhões de euros, o que corresponde a 5,7% do acréscimo daquela despesa.
O CCP indica que “o empreiteiro suporta metade do valor dos trabalhos complementares de suprimento de erros e omissões cuja deteção era exigível na fase de formação do contrato”. Mas não só. O construtor deverá ainda pagar 50% do custo com obras complementares de suprimento de erros e omissões “que, não sendo exigível que tivessem sido detetados na fase de formação do contrato, também não tenham sido por ele identificados no prazo de 30 dias a contar da data em que lhe fosse exigível a sua deteção”.
Por fim, o TdC recomenda que as entidades que sejam donos de obras públicas acionem obrigatoriamente os pedidos de indemnização previstos na lei, quando os erros e omissões decorram do incumprimento de obrigações.
Fonte: Eco